quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Metas e programa actual: como servir a dois senhores?

Confesso que só hoje consegui contrariar a falta de vontade de ler os documentos relativos às Metas Curriculares. Foquei a minha atenção no documento da Matemática. Já o deveria ter feito mais cedo, admito, talvez quando os documentos estavam em discussão pública, mas também é verdade que acho que tais discussões públicas são meras formalidades que os políticos têm de cumprir para poderem depois decidir conforme querem e terem meios para "justificar" tais decisões.
Ora eu sou daqueles que defendem a transparência, a objectividade e o pragmatismo na avaliação dos alunos. Assim sendo, concordo com o princípio de que tem que estar claro aquilo que se quer que os alunos aprendam e aquilo que se lhes vai perguntar nas provas (sejam elas os testes em cada escola ou os exames nacionais). Por isso nunca dei muita importância à terminologia. Objectivos, competências, metas, a designação não me preocupa e aceito que me digam até que são coisas diferentes. O que me interessa, realmente, é que me definam com clareza, quais os conhecimentos, saberes ou procedimentos que os alunos devem saber e segundo os quais serão avaliados. Se acrescentarem a isso informação sobre níveis de desempenho, melhor ainda!
Dito isto, tenho que saudar a existência de um documento deste tipo e estar em concordância com o parecer SPM quando afirma que se "estabeleçam objetivos claros, simples de descrever e de avaliar", que se opte "por uma organização anual e não apenas por ciclo de estudos" e que "os descritores de metas apresentados (...) são claros" e "passíveis de uma avaliação objetiva".
Tal concordância não me inibe, no entanto e paradoxalmente, de estar de acordo também com algumas das críticas que tenho lido ao documento. A principal, a meu ver, é aquela que a APM refere no seu parecer e que serve de inspiração ao título deste post: "as Metas Curriculares (...), agora dadas a conhecer, propõem um novo programa" para a disciplina de Matemática do Ensino Básico.
Ao começar a ler as metas propostas deparei com a seguinte realidade: um grande número delas não está coerente com o programa em vigor. A coerência que refiro aqui tem a ver, fundamentalmente, com o desfasamento em relação ao ano de escolaridade em que determinado conteúdo está previsto ser leccionado ou com o nível de aprofundamento das matérias que o programa actual preconiza.
Para ser mais claro, dou dois exemplos:
1) O objectivo geral "Multiplicar e dividir números racionais relativos" e respectivos descritores aparecem no domínio "Números e Operações NO7", isto é, no 7º Ano. No entanto, o programa de Matemática deste ano de escolaridade limita as operações aos números inteiros, deixando para o 8º Ano a extensão dessas operações aos números racionais.
2) "Reconhecer que se existir uma unidade de comprimento tal que a hipotenusa e os catetos de um triângulo retângulo isósceles têm medidas naturais respetivamente iguais a  a e b então a^2=2b^2, decompondo o triângulo em dois triângulos a ele semelhantes pela altura relativa à hipotenusa, e utilizar o Teorema fundamental da aritmética para mostrar que não existem números naturais a e b nessas condições, mostrando que o expoente de 2 na decomposição em números primos do número natural a^2 teria de ser simultaneamente par e ímpar", descritor para o objectivo geral "Medir comprimentos de segmentos de reta com diferentes unidades", no âmbito do domínio "Geometria e Medida GM7" para o 7º Ano. No mínimo, rebuscado!
Estas discrepâncias são um problema real que vai ser colocado a todos os professores de Matemática do Ensino Básico já este ano lectivo. Que fazer? Seguir o programa e ignorar as metas? Seguir as metas e ignorar o programa? Tentar conjugar as duas coisas? E tempo para o fazer?
O documento das Metas Curriculares aponta no sentido de abandonar o programa: "O documento resultante deste processo e agora apresentado constituirá um referencial a seguir, num primeiro ano – 2012-2013 –, a título indicativo, após o que assumirá um caráter obrigatório, articulando-se com as avaliações a realizar. O primeiro ano, em que é fortemente recomendado o seguimento das metas, sem que haja, ainda, uma obrigatoriedade do seu cumprimento, permitirá não apenas uma familiarização, por parte dos professores, como também uma aferição e uma posterior concretização decorrente da experiência". Mas tal parece-me complicado. Como posso satisfazer uma meta, por exemplo, de 8º se os conteúdos que a substanciam não foram leccionados no 7º ou me parece que se enquadram na matéria que o programa prevê para o 9º? E que faço às minhas turmas de 8º Ano quanto àquelas metas que agora aparecem no 7º mas só no 8º é que está previsto no programa leccionar os conteúdos que as fundamentam?
Esta questão do desfasamento, repito, não é um problema menor. Revela, claramente, que  os autores das metas não trabalharam com base na estrutura sequencial das matérias do programa em vigor, nem consideraram a sua abrangência em termos do grau de aprofundamento das matérias. Não discuto aqui se o programa é bom ou mau. O facto é que foi homologada em Dezembro de 2007 e generalizou-se a todo o Ensino Básico no ano lectivo de 2010/11. Ou seja tem dois anos de aplicação. Estamos perante uma reformulação programática com dois anos de existência e que tem uma perspectiva de durabilidade de mais um ano! Isto parece-me inconcebível a todos os níveis. Ao nível dos alunos, porque não será de todo pedagógico pensar que um aluno poderá ter frequentado três estruturas programáticas em nove anos de Ensino Básico: a que acabou em 2009/2010, a que agora está em vigor e aquela que deve surgir na sequência destas metas. Ao nível dos professores, porque obriga a constantes remodelações de planificações, de planos de aula, de adequações de graus de aprofundamento e de dificuldade na avaliação. Questiono-me se vale a pena planificar! Ao nível dos Encarregados de Educação, que estão prestes a ver quebrada a promessa de manuais com durabilidade de seis anos. De certeza que os manuais escolares que este ano comprei para o meu filho mais velho não servirão para o meu filho do meio que apenas tem uma diferença do primeiro de três anos. Salva-se, mais uma vez, o negócio das editoras!
A minha perspectiva de que novo programa está para chegar rapidamente consubstancia-se também na preocupação dos autores do documento Metas Curriculares em elaborarem metas que pormenorizam bastante determinadas propriedades/conceitos, em especificarem metas para níveis de desempenho superiores e até em levarem o formalismo de escrita ao exagero. Isto não é nada habitual nas metodologias associadas aos programas em vigor e evidencia uma clara mudança de paradigma educacional. Muitas das metas "cheiram" a Matemática na sua essência mais pura, sem preocupações com os públicos alvos a que serão aplicadas. Aliás, basta ler os pareceres da APM e da SPM para se perceber que por detrás disto tudo está uma "guerra" de escolas ou autores.
O que não é justo é que esta "guerra" e o querer fazer diferente tenham como consequência a perturbação do processo de ensino/aprendizagem das escolas. Sejamos claros: as metas eram necessárias e são bem-vindas; o que não se admite é que surjam em dissonância com os programas em vigor; o que me continua a incomodar é a leveza com que se deita fora o trabalho dos outros e se refaz tudo de novo!

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